Por: Renan Pereira
Fernando Temporão é um dos mais talentosos compositores da nova geração da música brasileira. Radicado nas tradicionais rodas de samba do bairro da Lapa, no Rio de Janeiro, o músico apresentou, em seu primeiro disco em carreira solo, uma sonoridade que vai muito além do samba que o lapidou.
“De Dentro da Gaveta da Alma da Gente” foi eleito pelo RPblogging como uns dos 30 melhores discos nacionais de 2013 devido à abrangência deliciosamente pop com a qual o músico expôs traços de sua intimidade, quebrando com naturalidade aquele muro que sempre é construído contra o ouvinte quando o artista decide abordar seu próprio interior. Temporão fala simples, mas de coração.
Um nome emergente da música brasileira, Temporão volta a abrir a gaveta da sua alma nessa entrevista ao RPblogging. Nela, o artista nos conta um pouco mais sobre a sua carreira, partilhando também suas opiniões um pouco sobre os rumos da música alternativa feita principalmente no Rio de Janeiro.
Como e quando você começou na música? Desde o princípio, você tinha certeza de que gostaria de seguir carreira como músico?
Tudo começou com um violão velho do meu pai que ficava lá em casa, encostado no canto. Acho que ter aquele instrumento ali, à mão, foi determinante pra tudo o que veio depois. Além do violão, meu pai sempre comprou muitos discos, ouvia música o tempo todo – em alto volume – e eu acompanhava de perto todo esse universo da chegada dos cd’s, os Lp’s, a coleção de discos antigos, os amplificadores, caixas de som, vitrolas… ainda lembro quando ele comprou nos Estados Unidos um cd-player de cartucho, onde cabiam 5 cd’s, foi uma revolução! A música era, portanto, onipresente. Em 1994, quando fiz 11 anos, pedi aos meus pais que pagassem um professor de violão, e essas aulas só aprofundaram minha curiosidade pela música. Meu professor era o Nelson Cerqueira, irmão do DJ Edinho, um cara que tocava numa banda de Ska muito bacana chamada Kongo e conhecia tudo de reggae. Eu, aos 11 anos, tinha nessas aulas, frequentemente, momentos de bate papo sobre música, política, futebol… tinha um lado bacana de tirar as músicas que eu queria saber tocar e um lado mais sério também, de estudo. O Nelson era um instrumentista exigente e lembro dele passar umas coisas do Bach, Villa-Lobos e até mesmo do João Pernambuco pra estudar. Acho que ainda sei tocar “Sons de Carrilhões”.
Então esse ambiente musical em casa foi fundamental, e ter aprendido a tocar violão com 11 anos foi bacana também porque a partir daí eu passei a ter alguma autonomia com o instrumento, passei a tirar músicas de ouvido e virar as tardes e noites todas tocando. Anos depois, na faculdade de Ciências Sociais, quando bateu uma crise e eu passei a questionar se era aquilo mesmo que queria pra mim, concluí que o que me dava mais prazer era fazer justamente o que eu já fazia todo santo dia: tocar violão, compor e cantar. Essa simples constatação afetiva me ajudou a sustentar essa opção pela música profissionalmente.
Você não vem de uma família de músicos, e por mais que haja sempre um apoio incondicional dos pais, viver de arte é algo muito complicado. Houve algum momento em que seus pais tentaram te convencer a investir em outra profissão e deixar a música pra lá?
Vir de uma família tradicional, no sentido das escolhas profissionais dos meus pais, tios e avós, é sempre mais complicado, porque todo protagonismo é traumático por natureza. Eu sou o primeiro e, por enquanto, único membro da família inteira a trabalhar e viver de arte. Tenho um irmão mais novo, Gabriel, que está estudando música e, quem sabe, siga o mesmo trilho. Mas embora o contexto familiar seja esse de um núcleo mais tradicional, sempre tive apoio dos meus pais pra seguir na música. Em nenhum momento eles sugeriram algo ou fizeram qualquer tipo de pressão pra que eu investisse em outro caminho. Na realidade, a pressão que sinto e sempre senti, no sentido de sustentar essa escolha, é minha mesmo, é uma cobrança que me faço o tempo todo. Pode ser que essa paixão evidente pelo ofício que escolhi, tenha convencido eles desde cedo de que não haveria mesmo outra estrada pra mim e, além disso, meus pais sempre nutriram muita simpatia pelas artes, pela música… na realidade minha escolha parece ser muito mais um motivo de satisfação do que frustração pra eles. Isso me ajuda e me atrapalha. De qualquer forma, acho que normalmente as pessoas tendem a procurar um ofício que proporcione um equilíbrio entre a satisfação pessoal, o prazer, e o retorno financeiro. Só que os artistas costumam estar tão afetados por um amor e pela inevitabilidade de se fazer o que se faz, que esses cálculos pragmáticos ficam em segundo plano.
Como foi adentrar no mundo da música e perceber que, aos poucos, você estava tocando com gente importante e, mais do que isso: se tornando um artista importante?
Acho que esse tipo de percepção acontece naturalmente, com o tempo, com os acidentes e acertos da vida. Mais do que chegar em algum lugar ou atingir objetivos ou se tornar algo, o grande lance da vida é ter prazer com o que se faz, dia após dia, sem muita preocupação com as consequências disso. Em algum momento eu certamente vou fazer um apanhado de tudo o que fiz, mas por enquanto a sensação que tenho diariamente é a de que as coisas ainda estão começando e tenho tudo por fazer. Se no meio dessa caminhada toda alguém considerar minha música importante e relevante, acho que posso pensar que estou indo pro lugar certo. Eu me vejo, ainda hoje, subindo um degrauzinho a cada dia, conhecendo pessoas maravilhosas a cada dia, crescendo um pouco mais a cada erro e acerto e, principalmente, aprendendo a sobreviver entre os desafios que me são impostos por esse universo profissional da música. Mas é, de fato, muito bacana quando a gente pode trocar experiências com pessoas que admiramos e que são importantes pra nossa evolução.
Você tem uma raiz artística muito ligada ao samba. Trabalhou com o grupo Sereno da Madrugada e lançou um trabalho em parceria com o João Callado. Por que, no primeiro trabalho solo, você decidiu seguir outra trilha musical?
Essa é uma pergunta que tem sido feita com frequência e que, inclusive, deu a tônica para algumas críticas do disco. Senti algum grau de frustração em jornalistas que esperavam um disco de samba. Acho importante explicar:
Minha relação com o samba e com o universo do samba se estabeleceu inicialmente na Lapa, no comecinho dos anos 2000, quando entrei para a faculdade. Naquele momento, havia um clima muito forte de revalorização dos antigos compositores de samba e choro na mesma medida em que ocorria uma revitalização da Lapa enquanto espaço urbano, como se uma coisa alimentasse a outra. Novos espaços estavam surgindo, o circo voador estava sendo reconstruído, brotavam novas casas noturnas, a Lapa passou a ser um lugar minimamente seguro para ser frequentado à noite, os músicos estavam tendo novos espaços para trabalhar e muita gente nova (que era o meu caso) chegou junto para ver aquilo acontecer e fazer parte. Acho que havia um clima de novidade e uma sede de se conhecer os compositores antigos, os discos, as histórias, uma coisa da identidade carioca que sempre esteve no ar mas que naquele momento se cristalizou artisticamente. Nesse momento, nós que estávamos num nicho artístico mais tradicional – no caso a Lapa e a faculdade de Ciências Sociais – criamos o Sereno da Madrugada e começamos a tocar por ali, no centro da cidade, mas essa sede de música brasileira, de revalorização do baile, da gafieira, estava por todo lado, inclusive pela zona Sul, onde o pessoal da Orquestra Imperial, de um nicho artístico mais contemporâneo, também passou a fazer seus bailes de samba semanais. Eu estudava no centro, vivia tocando e vendo shows na Lapa, mas morava na Zona Sul, ia aos bailes da Orquestra Imperial, e acompanhava as carreiras do Kassin, do Domenico, do Rodrigo Amarante e cia. Ainda trabalhava na gravadora Biscoito Fino e convivi com Francis Hime, Áurea Martins, Herminio Bello de Carvalho (de quem me tornei parceiro), Luiz Melodia e uma turma da MPB. Então posso dizer que foram anos intensos de pesquisa musical, de ouvir, a cada semana, 2 ou 3 novos discos, estudar violão de 7 cordas, fazer shows com o Sereno e, em paralelo, ir aos shows do Los Hermanos, do Monarco, da Adriana Calcanhoto e do Élton Medeiros.
Então essa curiosidade pelo antigo (que não deixava de ser novidade para mim) convivia tranquilamente com o amor ao contemporâneo porque, de fato, essas coisas não competem, né? Eu compunha muito, mas poucas músicas eram sambas… e eu tentei bastante! A maioria das músicas tinha uma pegada mais pop, já naquela época. E segui assim, fazendo minhas parcerias com o pessoal da Lapa (Moyseis Marques, João Callado, Alfredo Del-Penho, Roberta Nistra, João Martins e etc…), fazendo os shows e gravando.
Agora, o disco que fiz com o Sereno se chamou “Modificado” e já apontava uma vontade importante de trazer ao samba da Lapa, sempre tão reverente, uma linguagem mais contemporânea… gravamos inclusive o ‘Samba a Dois’ do Camelo como uma forma de indicar isso. O samba título do disco, de autoria do Padeirinho da Mangueira, dizia “Vejo o samba tão modificado, que também fui obrigado a fazer modificação (…)” e isso era uma espécie de manifesto pra nós do Sereno. Acho que meu desejo de trabalhar com o novo está muito presente desde essa época e posso afirmar que minha busca, com o Sereno, já era fazer mais ou menos o que fiz agora no disco solo… E, depois, com o fim do grupo, teve o disco com o João Callado que, embora seja um trabalho mais tradicional, com participação de muita gente bacana, não pode ser visto como um definidor de identidade, até porque as músicas são quase todas do João, e eu entrei mais como letrista para a estética daquele repertório bonito. Foram dois trabalhos compartilhados.
Quando resolvi fazer um meu, um disco solo que refletisse, portanto, quem eu sou musical e artisticamente, as músicas que estavam guardadas no baú eram essas que estão no disco, já estava tudo pronto, definido há muito tempo do ponto de vista da linguagem que eu utilizaria. Acho importante dissecar bastante os fatos nessa questão para que fique claro o quão natural foi fazer o “De Dentro da Gaveta da Alma da Gente”. Embora haja realmente uma diferença estética importante quando se comparam os trabalhos, não acredito em nenhum tipo de rupturas ou mudanças de trilha do ponto de vista pessoal e afetivo. A trilha desse disco é a trilha que já estava dentro de mim.
Além de trazer uma grande qualidade lírica e melódica, o disco “De Dentro da Gaveta da Alma da Gente” é um primor em produção. Quão grande foi a participação do time de produtores e colaboradores na sonoridade final do trabalho?
O Kassin e o Alberto Continentino foram importantíssimos nesse processo de construção da ‘cara’ do disco. Eu levei muitas idéias prontas, muitas coisas que eu queria que fossem feitas de uma forma específica, mas lá no estúdio nasceram tantas outras fundamentais sobre a forma, instrumentação, arranjo e etc. Acho que o diálogo com os produtores foi muito bacana, fluido, tranquilo, e o disco ficou da forma que eu gostaria que ficasse. E eu acredito muito nessa maneira de trabalhar, coletivamente, de ir criando enquanto se grava, sem muita responsabilidade ou necessidade de ter que estar com tudo pronto antes de chegar no estúdio. E tem a contribuição dos parceiros, do Domenico, que fez música e tocou no disco, do Mauro Aguiar, um verdadeiro gênio, um dos grandes letristas da música brasileira, do Verocai, que escreveu lindos arranjos de cordas… de um monte de gente.
Está satisfeito com a recepção do disco, tanto pela crítica quanto pelos ouvintes?
Olha, eu me sinto muito feliz. Embora eu saiba que a crítica é relativa e não define muita coisa, foi bacana a ter tido uma resposta tão positiva, em sites, revistas, blogs e etc. E o público surpreende sempre. A quantidade de pessoas que escrevem é muito grande. Hoje mesmo recebi um recado de um rapaz que queria a cifra de “O que é Bonito” para gravar um vídeo de aniversário pra noiva dele… é bacana quando as pessoas querem tocar as músicas. Eu sou muito crítico, comigo e com os outros… acho que mesmo com toda a satisfação, eu tendo a buscar outras coisas pro próximo disco. Mas tudo funcionou pra um primeiro projeto feito de maneira independente, temos quase 10 mil downloads de pessoas que foram ali, espontaneamente procurar meu som… a música tem circulado sem máquina nenhuma pra empurrar. A preocupação tem sido cada vez maior com um lado mais burocrático, esse lance de produção, e de profissionalizar a coisa toda, fazer grana pra bancar as próximas empreitadas.
No mês passado, você participou do ótimo “Cultura Livre”, da Roberta Martinelli. O ponto que talvez mais tenha surpreendido quem assistiu ao programa foi a sua indignação com a forma que a música independente vem sido tratada pelo pessoal do Rio de Janeiro. A gente percebe que a imprensa carioca está muito concentrada dentro de um único grupo de mídia, e esse grupo de mídia não parece muito interessado em abraçar o que está sendo feito atualmente dentro da MPB, exceto raríssimos casos. O apoio do poder público do Rio também é pequeno, infelizmente. O pior de tudo é que, acompanhando o cenário alternativo atual, se vê uma produção muito maior ligada a São Paulo, embora existam muitos artistas de qualidade no Rio de Janeiro – talvez até em igual proporção com a capital paulista. Como sobreviver a isso?
São vários problemas que todo artista independente precisa superar. Os governos do Rio de Janeiro, nas esferas municipal e estadual, até têm grana pra sustentar durante todo o ano, centenas de shows para artistas independentes, com remuneração digna e estrutura. Mas falta quem pense, quem elabore, quem conheça a cena e tenha tesão de fazer acontecer. A própria rede de SESC’s existe no Rio, mas não existe alguém lá dentro que consiga fazer um centésimo do que é feito em SP. Não sei se conseguiríamos fazer igual, porque a dimensão é menor, mas poderíamos fazer muito mais. Acho que o Rio sempre teve um protagonismo artístico e cultural no Brasil, por uma série de motivos, mas não basta ter uma cena brilhante, como temos hoje, se não há vontade dos jornalistas, por exemplo, de vestir a camisa. É preciso algum grau de bairrismo pra que as coisas aconteçam. Os poucos projetos que acontecem aqui na cidade, com estrutura e cachê, feitos por curadores cariocas, tem pouquíssimos artistas cariocas. Os espaços oferecidos, quando existem, são no esquema “dê o seu jeito”. Tudo contribui para que o artista desista de tocar e vá abrir uma cafeteria. Eu sempre disse que uma cena só se constrói com vontade política, porque isso é um ato politico de identidade local, e quando, ao lado dos músicos, existem jornalistas, empresários, produtores. Acho que em São Paulo houve mais vontade de fazer acontecer, além de todos os outros fatores que ajudam, como o tamanho da cidade, a quantidade de espaços e etc. Mas o último ano foi sensacional pro Rio. Espero que continue melhorando.
Creio que você seja um defensor do samba. Falando sobre o gênero, talvez no Brasil o mais culturalmente marcante de todos, ele anda mais sumido do que deveria, não é verdade? Embora ele se encontre muito fundido a outras vertentes, aquele samba mais clássico e puro parece engavetado nas estantes dos grandes compositores do passado. Por que, afinal, há essa impressão?
Acho que essa é uma questão de mídia e mercado. Existem diversos artistas talentosos que fazem samba tradicional e que, assim como a maioria dos compositores contemporâneos dessa “nova MPB”, não têm espaço pra mostrar o trabalho. Talvez a combalida Lapa seja o reduto único. Quando a gente fala de música no Brasil, acho que raramente padecemos de falta de qualidade. Se as pessoas não conseguem ouvir samba é porque as rádios não tocam, a tevê não toca e por aí vai. Existe um filtro de mercado muito perverso que privilegia, normalmente, o que é banal, popularesco, comercial. A Regina Casé está lá na tevê, todo fim de semana, com Péricles, Thiaguinho, Arlindo Cruz e Xande de Pilares. Esse é o único samba que as pessoas podem ouvir. Artistas como Marcos Sacramento e Moyseis Marques, dois dos maiores cantores de samba do Brasil, não estão no “Esquenta”. Não acho que o samba esteja sumido… quem procurar vai achar com facilidade no beco do rato, no semente, no samba do ouvidor, no renascença. O problema é que as pessoas procuram cada vez menos as coisas. E, como todo produto, é importante que as coisas cheguem até as pessoas. Só que não vai tocar no radio se não pagar jabá… na tevê idem. Dilemas que a internet não conseguirá dissolver em curto prazo, embora haja avanços.
Penso que, embora todo artista tenha aquela vontade de sair Brasil afora fazendo shows, não existam tantas oportunidades. Você planeja sair com a sua banda, levando sua música para os quatros cantos do país?
Com certeza o desejo é enorme. É muito frustrante não poder estar fisicamente em todos os espaços onde sei que a minha música é tocada. A internet é muito importante no sentido de fazer as pessoas conhecerem o som, mas elas querem mais, querem ver o show, o artista. Um exemplo: parte grande do meu público é de jovens do norte/nordeste que perguntam, dia sim dia não, quando estarei na Bahia, Recife, Manaus ou João Pessoa. Então é realmente muito frustrante saber que todo risco financeiro para levar a banda para fora do estado é meu. Por isso, repito, é fundamental que o artista consiga essa estrutura básica de produção para que possa circular. Mas nem sempre isso é possível. Os planos próximos, infelizmente, se restringem a Rio e São Paulo. E a esperança, tá viva, sempre.
Agradecemos imensamente a participação de Fernando Temporão. Abaixo, você tem a oportunidade de conferir “De Dentro da Gaveta da Alma da Gente”, o primeiro álbum solo do músico.