Por: Renan Pereira
Em 2004, Pete Doherty se afundava no uso de drogas pesadas, e embora a utilização de alucinógenos seja algo até comum no mundo da música, é provável que poucas vezes os caminhos lisérgicos tenham surtido tanto efeito em um trabalho de um grupo quanto no segundo disco do The Libertines. Afinal de contas, o auto-intitulado álbum é inteiramente dominado pelas experiências doidonas de Doherty, percorrendo em vias nada óbvias os efeitos das mais diferentes substâncias.
Naturalmente inseguro, o registro escorrega-se em catorze faixas praticamente vomitadas ao ouvinte. São canções de significado discutível, abordando instrumentais tortuosos e vocais bêbados, mas surpreendentemente acessíveis. Esqueça o exoterismo de “The Piper at the Gates of Down”, os exageros do The 13th Floor Elevators ou até mesmo as atuais propostas inaudíveis do MGMT: a concepção lisérgica do The Libertines, apesar de tão drogada quanto as citadas, aproxima-se dos gostos populares através de melodias de fácil aceitação. Em suma, mesmo sob efeito de tantas substâncias tóxicas, a banda soube centrar-se em um registro deliciosamente pop, que não decepcionaria o público que havia aplaudido, dois anos antes, a sua estreia em estúdio.
De fato, “Up the Bracket” havia sido um sucesso. Produzido por Mick Jones (The Clash), a estreia da banda não demoraria a chamar a atenção do público inglês, que se encontrava ansioso por novidades. Concebido como uma resposta britânica às concepções dos Strokes, o disco, hoje citado por diversas fontes como um dos melhores álbuns da década passada, praticamente reiniciou a tão famosa revitalização do rock britânico, que pouco tempo mais tarde nos ofereceria nomes marcantes como Franz Ferdinand , Block Party e Arctic Monkeys. A banda estava chegando ao sucesso de forma especialmente rápida, mas ao mesmo tempo em que cresciam as incertezas sobre seu futuro.
Além da entrega às drogas, o conjunto enfrentava uma guerra declarada entre seus líderes, Carl Barât e o já citado Pete Doherty; o relacionamento entre os dois se mostrava tão conturbado que muitos viam como impossível o lançamento de um segundo disco. Mas pressionado a lançar aquilo que deveria ser uma resposta consistente ao sucesso do trabalho anterior, o grupo tratou de se esforçar (da sua própria maneira) para conceber um trabalho convincente. Enquanto Doherty decidiu estudar empiricamente os efeitos das mais pesadas substâncias, Barât resolveu manter-se alinhado, tomando os remos para si a fim de não deixar a barca afundar.
Como resultado, esses anti-heróis do indie rock acabaram nos oferecendo um registro icônico, ciente da excentricidade e da desorganização que dava o ritmo do cotidiano da banda. “The Libertines”, o disco, nem tenta esconder os problemas: além de instrumentalmente lisérgico, contém letras que tratam, constantemente, do relacionamento nada amistoso entre Barât e Doherty.
Por mais que se esperasse que tamanha insegurança trouxesse à tona um álbum inconsistente, o disco acabou apresentando, na realidade, uma qualidade surpreendente. Dinâmico ao extremo, o registro vai brincando durante toda sua duração com guitarras aventureiras e melodias cativantes, bordando texturas ao mesmo tempo agradáveis e atraentes. A primeira faixa já dá o ritmo, e através da ótima “Can’t Stand Me Now”, um single poderoso, o ouvinte vai se transferindo para a louca viagem proposta pelo disco.
Bebendo de influências punk, personificadas novamente na presença de Mick Jones como produtor, “Last Post on the Bugle” mostra que além dos acertos melódicos, a banda poderia surpreender quanto aos andamentos rítmicos. E, apesar de percorrer um caminho incerto, ladeado por cenários auto-modificantes, a sonoridade do disco mostra-se, de fato, especialmente rica: há espaço para tudo, e a terceira faixa, “Don’t Be Shy”, parece nos convencer de que, mesmo com uma musicalidade cheirando a vinho barato, o The Libertines poderia fabricar um registro consistente. “The Man Who Would Be King” avança a passos largos no psicodelismo, construindo-se sobre uma estrutura improvisada, como se estivesse flutuando por nuvens de fumaça de uma intensa seção de fumo.
De todos os acertos melódicos do álbum, o maior provavelmente está em “The Music When the Lights Go Out”, uma deliciosa canção semi-acústica que pinta mais uma alucinação química de Pete Doherty. Anárquica, “Narcissist” brinca com o country rock enquanto recorta e cola texturas, entortando seções rítmicas através de uma intensidade característica do indie rock inglês da década passada. Não há tempo para respirar ar puro, e com “The Ha Ha Wall” vamos nos entorpecendo por osmose.
A presença de Mick Jones parece ter encorajado a banda a alcançar o cenário musical britânico de 1977, e em “Arbeit Macht Frei” o The Libertines consegue soar tão anárquico quanto os Sex Pistols… Se em 2002 o conjunto havia inserido novidade e um novo ânimo ao rock inglês, em 2004 se sentiu mais a vontade para, a partir de influências diretas, construir com naturalidade a evolução de seu som. Dessa forma, a banda mostrou não ter se apoiado e nem confiado nos conceitos pré-estabelecidos, e acabou fazendo de seu segundo disco um registro honesto, acessível apesar de não ter se apoiado conceitualmente em comercialidades.
Incerta de forma intencional, “Campaign of Hate” continua a vagar, por caminhos nada óbvios, pela mente viajada de seu compositor; é perceptível que, apesar de construído por riffs incertos, tortuosos, o som do The Libertines foi poucas vezes igualado (ou superado) dentro do indie rock no quesito “guitarras”. As provas dessa ideia estão esparramadas por todo o disco, e como não poderia deixar de ser, na décima faixa: “What Katie Did” é mais um número atraente em que os riffs vão construindo texturas especialmente melódicas.
“Tomblands” é uma canção dinâmica, mas que, ao mesmo tempo, parece se desencontrar a todo instante: uma espécie de caricatura de algo que já é caricato. Mais uma vez flertando com a crueza do punk, a banda fabricou em “The Saga” uma canção certeira para os ouvidos mais sedentos por peso e velocidade. Já, “Road to Ruin”, soa como uma profetização do que estaria por vir: no final daquele mesmo ano de 2004, o grupo encerraria suas atividades devido aos problemas internos.
A última faixa, “What Became of the Likely Lads”, parece fundir-se à primeira, provando que o álbum, apesar de seus descaminhos, consegue manter um conceito, não se desviando de seus propósitos. De fato, o disco é surpreendentemente consistente, algo até mesmo improvável para uma banda repleta de problemas: Carl Barât e Pete Doherty até não poderiam ser capazes de continuar uma carreira juntos, mas mostravam que, unidos ou separados, tinham a faca e o queijo na mão. São músicos de talento irretocável, e isso basta.
Depois do fim do The Libertines, Carl Barât montou a banda Dirty Pretty Things, e Peter Doherty o Babyshamblers. Nunca mais tiveram um grande destaque, mas mesmo assim continuam a ser apontados como dois dos mais importantes nomes do indie rock. Prova de que, mesmo uma década depois de seu fim, o The Libertines continua a embalar os ouvidos de um grande grupo de ouvintes, influenciando diversos novos artistas.
NOTA: 8,5
Track List:
01. Can’t Stand Me Now (Doherty/Barât/Hammerton) [03:23]
02. Last Post on the Bugle (Doherty/Barât/Bower) [02:32]
03. Don’t Be Shy (Doherty/Barât) [03:03]
04. The Man Who Would Be King (Doherty/Barât) [03:59]
05. Music When the Lights Go Out (Doherty) [03:02]
06. Narcissist (Barât) [02:10]
07. The Ha Ha Wall (Doherty/Barât) [02:29]
08. Arbeit Macht Frei (Doherty) [01:13]
09. Campaign of Hate (Doherty) [02:10]
10. What Katie Did (Doherty) [03:49]
11. Tomblands (Barât/Doherty) [02:06]
12. The Saga (Doherty/Roundhill) [01:53]
13. Road to Ruin (Doherty/Barât) [04:21]
14. What Became of the Likely Lads (Doherty/Barât) [05:54]