Por: Renan Pereira
A sueca Neneh Cherry andava esquecida. Afinal, sem lançar um disco há 17 anos, a cantora parecia fadada a continuar presa eternamente aos anos noventa. Pouco conhecida pela geração atual, Cherry marcou aquela década ao se apresentar como um dos pilares europeus da renovação do R&B que então ocorria. Para se ter uma ideia, a cantora foi uma das primeiras artistas a investir, com vigor, na mistura da música pop com o hip-hop que imergia com força no cenário mundial: seu primeiro disco, lançado ainda em 1989, já trazia como colaborador o produtor britânico Robert Del Naja (o 3D do Massive Attack), que apenas alguns anos depois seria reconhecido mundialmente como um dos cardeais do trip hop. Sim, senhoras e senhores, Neneh Cherry foi, desde o início de sua carreira, uma figura importantíssima. Em seus discos seguintes, “Homebrew”, de 1992, e “Man”, de 1996, a musicista tratou de incorporar ainda com maior intensidade um conjunto de elementos modernos da música pop, fazendo de sua carreira uma genuína representante das grandes mudanças ocorridas no modo de se produzir música naqueles tempos.
Se Cherry foi inovadora lá nos já longínquos anos noventa, o que então poderíamos esperar dela em seu tardio retorno? Estaria a cantora voltando à ativa apenas para relembrar suas glórias do passado? Para nossa sorte, os 50 anos de Cherry não significam nenhum sinal de preguiça. Surpreendendo a todos, a sueca está não apenas de volta, mas se mostra disposta a inovar mais uma vez. Contando com a produção do renomado Four Tet, “Blank Project” se caracteriza como um registro inegavelmente atual de uma veterana que utiliza toda a sua experiência para, mais uma vez, brincar com as nuances mais modernas da música.
A faixa inaugural, “Across the Water”, já escancara o conceito pelo qual o disco é guiado: minimalista e refinada ao mesmo tempo, a canção exala fortes sentimentos do início ao fim, enquanto batidas cruas deixam a cantora brilhar livremente. Talvez o maior acerto de Four Tet esteja, justamente, na ideia de fazer de “Blank Project” um registro que destaque, a todo instante, o poder performático de Cherry. Portanto, assim também não poderia deixar de ser a faixa-título: o produtor marca sua presença com um trabalho pra lá de caprichado no tratamento dos rumos sonoros, mas é Cherry que brilha em meio a uma estrutura eletrônica extremamente moderna. A seguinte, “Naked”, mantém o conceito: batidas fortes e penetrantes, e arranjos crus praticamente ausentes de maiores detalhes, fazem com que a emoção emanada pelo vocal da cantora se torne novamente o ponto central da audição.
A linha é mantida em todo o registro, mas se engana quem pensa que, devido a isso, o poder de surpreender constantemente se distancia de seu andamento: mesmo em uma sucessão de faixas muito parecidas, idênticas em conceito, Neneh Cherry trata de abrir nossas bocas ao apresentar sempre um “algo a mais”. Na seminal “Spit Three Times”, por exemplo, a cantora se derrama em confissões, admitindo suas próprias fraquezas em uma faixa poderosa, um hit em potencial que contém um belo acerto melódico, apesar de se caracterizar como a inesperada união do eletrônico com o gótico. A quinta, “Weightless”, é, apesar desse título, uma das canções mais pesadas do disco: contando com uma estrutura ruidosa, a faixa derrama novas facetas do introspectivo de Cherry enquanto revela ao ouvinte os primeiros dos poucos instantes “pista de dança” do registro.
“Cynical” é uma daquelas canções que arranham nossas percepções, fazendo com que o ouvinte viaje sem moderação na atmosfera instável proposta por Cherry e seu produtor: novamente, uma rede incerta de batidas e pequenos efeitos é costurada com total e absoluta combatividade, fazendo com que as emoções até mesmo briguem entre si. Já “422” é uma canção diferente, que se preocupa mais em construir uma ambientação para o íntimo sombrio de Cherry do que em fazer com que ele exploda em uma espiral: uma calmaria que funciona como um respiro em meio a uma sucessão de faixas tão agressivas.
Se dançar é o que você quer, nada melhor que o poderoso single “Out of the Black”, em que Cherry brinca com as nuances do pop eletrônico na companhia de uma das maiores representantes do gênero: sua compatriota Robyn. Continuando no mesmo clima, a seguinte, “Dossier”, até ensaia um cenário mais leve, mas somente para nos enganar: apesar de dançante, a canção se comporta como um número hipnótico, em que o vocal da musicista dança em meio a batidas enlouquecedoras, inserindo-se em um ambiente regado a muitas drogas sintéticas.
A décima e derradeira canção é “Everything”, condensando toda a forte temática emotiva do álbum em mais uma estrutura convidativa à dança, mostrando, de certa forma, o viés ascendente que envolve o conceito do álbum… Enquanto, no início, Cherry se utiliza de uma atmosfera dolorida para confessar ao público seus segredos, no fim ela apenas quer dançar; uma prova de que, mesmo em meio a tanta dor, o preceito que rege a mente da cantora é a ideia da superação. Nada mais plausível, afinal, a própria Neneh Cherry revelou o fato que motivou suas novas canções: ela as compôs, na companhia do seu marido, Cameron McVey, impulsionada pela perda de sua mãe (a artista plástica Monica Karlssom), ocorrida em 2009. Surpreso? Como, enfim, a cantora pode utilizar desse triste acontecido para, na parte final do disco, cair na dança?
Tudo é complexo e muito instável, e mesmo que seja muito difícil descrever as intenções de Cherry, há um ponto que é indiscutível: ela está mais do que certa. Ao voltar depois de tanto tempo, ela nos ajuda a perceber que nunca devemos duvidar dos velhos nomes, por mais esquecidos que eles estejam… Eles geralmente não perdem a capacidade, e grande seres que são, são capazes de se adaptar sem maiores problemas aos dias atuais. Afinal, Neneh Cherry mostra que é possível ser uma musicista com cinquenta anos de vivência e ter o mesmo pique de uma garota de vinte anos: apesar de ser veterana, sua obra continua carregada de frescor.
NOTA: 8,5
Track List:
01. Acroos the Water [03:28]
02. Blank Project [04:05]
03. Naked [03:57]
04. Spit Three Times [04:18]
05. Weightless [05:46]
06. Cynical [04:10]
07. 422 [05:21]
08. Out of the Black [05:15]
09. Dossier [05:12]
10. Everything [07:20]