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2014: Blank Project – Neneh Cherry

Blank Project

Por: Renan Pereira

A sueca Neneh Cherry andava esquecida. Afinal, sem lançar um disco há 17 anos, a cantora parecia fadada a continuar presa eternamente aos anos noventa. Pouco conhecida pela geração atual, Cherry marcou aquela década ao se apresentar como um dos pilares europeus da renovação do R&B que então ocorria. Para se ter uma ideia, a cantora foi uma das primeiras artistas a investir, com vigor, na mistura da música pop com o hip-hop que imergia com força no cenário mundial: seu primeiro disco, lançado ainda em 1989, já trazia como colaborador o produtor britânico Robert Del Naja (o 3D do Massive Attack), que apenas alguns anos depois seria reconhecido mundialmente como um dos cardeais do trip hop. Sim, senhoras e senhores, Neneh Cherry foi, desde o início de sua carreira, uma figura importantíssima. Em seus discos seguintes, “Homebrew”, de 1992, e “Man”, de 1996, a musicista tratou de incorporar ainda com maior intensidade um conjunto de elementos modernos da música pop, fazendo de sua carreira uma genuína representante das grandes mudanças ocorridas no modo de se produzir música naqueles tempos.

Se Cherry foi inovadora lá nos já longínquos anos noventa, o que então poderíamos esperar dela em seu tardio retorno? Estaria a cantora voltando à ativa apenas para relembrar suas glórias do passado? Para nossa sorte, os 50 anos de Cherry não significam nenhum sinal de preguiça. Surpreendendo a todos, a sueca está não apenas de volta, mas se mostra disposta a inovar mais uma vez. Contando com a produção do renomado Four Tet, “Blank Project” se caracteriza como um registro inegavelmente atual de uma veterana que utiliza toda a sua experiência para, mais uma vez, brincar com as nuances mais modernas da música.

A faixa inaugural, “Across the Water”, já escancara o conceito pelo qual o disco é guiado: minimalista e refinada ao mesmo tempo, a canção exala fortes sentimentos do início ao fim, enquanto batidas cruas deixam a cantora brilhar livremente. Talvez o maior acerto de Four Tet esteja, justamente, na ideia de fazer de “Blank Project” um registro que destaque, a todo instante, o poder performático de Cherry. Portanto, assim também não poderia deixar de ser a faixa-título: o produtor marca sua presença com um trabalho pra lá de caprichado no tratamento dos rumos sonoros, mas é Cherry que brilha em meio a uma estrutura eletrônica extremamente moderna. A seguinte, “Naked”, mantém o conceito: batidas fortes e penetrantes, e arranjos crus praticamente ausentes de maiores detalhes, fazem com que a emoção emanada pelo vocal da cantora se torne novamente o ponto central da audição.

A linha é mantida em todo o registro, mas se engana quem pensa que, devido a isso, o poder de surpreender constantemente se distancia de seu andamento: mesmo em uma sucessão de faixas muito parecidas, idênticas em conceito, Neneh Cherry trata de abrir nossas bocas ao apresentar sempre um “algo a mais”. Na seminal “Spit Three Times”, por exemplo, a cantora se derrama em confissões, admitindo suas próprias fraquezas em uma faixa poderosa, um hit em potencial que contém um belo acerto melódico, apesar de se caracterizar como a inesperada união do eletrônico com o gótico. A quinta, “Weightless”, é, apesar desse título, uma das canções mais pesadas do disco: contando com uma estrutura ruidosa, a faixa derrama novas facetas do introspectivo de Cherry enquanto revela ao ouvinte os primeiros dos poucos instantes “pista de dança” do registro.

“Cynical” é uma daquelas canções que arranham nossas percepções, fazendo com que o ouvinte viaje sem moderação na atmosfera instável proposta por Cherry e seu produtor: novamente, uma rede incerta de batidas e pequenos efeitos é costurada com total e absoluta combatividade, fazendo com que as emoções até mesmo briguem entre si. Já “422” é uma canção diferente, que se preocupa mais em construir uma ambientação para o íntimo sombrio de Cherry do que em fazer com que ele exploda em uma espiral: uma calmaria que funciona como um respiro em meio a uma sucessão de faixas tão agressivas.

Se dançar é o que você quer, nada melhor que o poderoso single “Out of the Black”, em que Cherry brinca com as nuances do pop eletrônico na companhia de uma das maiores representantes do gênero: sua compatriota Robyn. Continuando no mesmo clima, a seguinte, “Dossier”, até ensaia um cenário mais leve, mas somente para nos enganar: apesar de dançante, a canção se comporta como um número hipnótico, em que o vocal da musicista dança em meio a batidas enlouquecedoras, inserindo-se em um ambiente regado a muitas drogas sintéticas.

A décima e derradeira canção é “Everything”, condensando toda a forte temática emotiva do álbum em mais uma estrutura convidativa à dança, mostrando, de certa forma, o viés ascendente que envolve o conceito do álbum… Enquanto, no início, Cherry se utiliza de uma atmosfera dolorida para confessar ao público seus segredos, no fim ela apenas quer dançar; uma prova de que, mesmo em meio a tanta dor, o preceito que rege a mente da cantora é a ideia da superação. Nada mais plausível, afinal, a própria Neneh Cherry revelou o fato que motivou suas novas canções: ela as compôs, na companhia do seu marido, Cameron McVey, impulsionada pela perda de sua mãe (a artista plástica Monica Karlssom), ocorrida em 2009. Surpreso? Como, enfim, a cantora pode utilizar desse triste acontecido para, na parte final do disco, cair na dança?

Tudo é complexo e muito instável, e mesmo que seja muito difícil descrever as intenções de Cherry, há um ponto que é indiscutível: ela está mais do que certa. Ao voltar depois de tanto tempo, ela nos ajuda a perceber que nunca devemos duvidar dos velhos nomes, por mais esquecidos que eles estejam… Eles geralmente não perdem a capacidade, e grande seres que são, são capazes de se adaptar sem maiores problemas aos dias atuais. Afinal, Neneh Cherry mostra que é possível ser uma musicista com cinquenta anos de vivência e ter o mesmo pique de uma garota de vinte anos: apesar de ser veterana, sua obra continua carregada de frescor.

NOTA: 8,5

Track List:

01. Acroos the Water [03:28]

02. Blank Project [04:05]

03. Naked [03:57]

04. Spit Three Times [04:18]

05. Weightless [05:46]

06. Cynical [04:10]

07. 422 [05:21]

08. Out of the Black [05:15]

09. Dossier [05:12]

10. Everything [07:20]

2014: Supermodel – Foster the People

Supermodel

Por: Renan Pereira

Nunca bastou a nenhum projeto musical um simples conjunto de hits para que se candidatasse a uma quase unanimidade. Até por isso, o Foster the People ainda não obtém, sequer entre o público indie, uma louvação geral: há quem adore, há quem odeie e há quem o considera apenas um projeto legal. Mas afinal de contas, o que é o Foster the People? Um segundo álbum sempre tenta preencher as prováveis lacunas da estreia, e “Supermodel” se apresenta como o meio mais plausível para que certas dúvidas sejam respondidas.

Da força de “Torches”, o primeiro disco do conjunto, ninguém duvida. É provável também que ninguém levante alguma questão sobre a inteligência musical que permeia o cerne do conjunto, visto que seu líder, Mark Foster, não é apenas um músico, mas um sujeito graduado em música. Da mesma forma, ninguém discorda que, desde os primeiros segundos do primeiro disco, já estava clara a grande capacidade da banda em brincar de forma convincente com inúmeras facetas da música pop a fim de criar hits cativantes. O que dizer, afinal, de canções tão pegajosas e empolgantes como “Pumped Up Kids” e “Call It What You Want”? “Torches” convenceu com sua salada musical regada a números grudentos, mas ainda assim não foi capaz de dizer, em plenitude, o que o Foster the People é.

Seria a banda, enfim, uma grande hitmaker? Se o primeiro disco havia flertado com esse rótulo, seu sucessor deveria trazer a concretização de uma ideia sonora. Aguardado com ansiedade, “Supermodel” chega para tentar acrescentar mais alguns êxitos comerciais na sala de troféus do conjunto, enquanto tenta provar, até mesmo com certo ar de urgência, que Mark Foster e seus pupilos continuaram evoluindo nesses três últimos anos.

Assim como havia acontecido no registro anterior, “Supermodel” trata de saciar a sede do público por canções pegajosas logo em seu início. Fazendo seu dever de casa com primor, a primeira faixa, “Are You What You Want to Be?”, se comporta como um grande hino pop, partindo de onde “Torches” havia parado para conquistar o ouvinte sem nenhum dificuldade: uma letra interessante, arranjos certeiros e rumos melódicos pra lá de potentes servem como um perfeito abre-alas para o que promete ser um grande disco. A explosão sonora continua em “Ask Yourself”, que consegue emular um conjunto de clichês da música pop em uma estrutura atraente, satisfazendo os sempre ferrenhos planos comerciais da gravadora ao mesmo tempo em que consegue demonstrar a força artística do grupo.

Mas as estruturas óbvias do pop não conseguem se distanciar do descarte na terceira, “Coming of Age”, que apesar de se comportar como um número agradável para uma audição descompromissada, mais parece um rascunho do conceito “purpurinado” do último (e pior) disco do The Killers, “Battle Born”.  Ainda bem que gratas surpresas começam a surgir em “Nevermind”, uma assertiva canção de viés tropical que, para nosso espanto, bebe na fonte da chamada “nova MPB”, e mostra que, realmente, o Foster the People não deixou de crescer nesses três anos que separam “Torches” deste presente registro.

Toda essa evolução está ainda melhor condensada na dinâmica e moderadamente experimental “Pesudologia Fantastica”, em que a banda mostra pequenas fugas do habitual em uma estrutura rica e colorida, e deixando claro que o Foster the People está, mais do que nunca, disposto a flertar com o psicodelismo. Mais provas? Na curta “The Angelic Welcome of Mr. Jones” a banda incorpora os Beach Boys de “Pet Sounds” e “Smile” para criar uma vinheta de perfeita harmonia, condizendo bem com as pretensões do conjunto de fazer um “álbum perfeito de música pop”. Embora seja guiado por esse teor megalomaníaco, “Supermodel” nunca nega a seus ouvintes melodias de fácil acesso, visto “Best Friend” com suas guitarras rítmicas óbvias, uma pulsante linha de baixo e um clima todo animado. 

Mas a partir da oitava faixa, a banda parece deixar de atender suas próprias ideias a fim de satisfazer o dinheiro gasto com a luxuosa produção do disco, deixando as decisões conceituais e os rumos sonoros nas mãos do requisitado produtor Paul Epworth. Não há como negar a presença incisiva (e até mesmo exagerada) de Epworth na duvidosa “A Beginner’s Guide to Destroying the Moon”, que se enche de ecos de um pouco genuíno rock dos anos noventa para supostamente escancarar uma “evolução”. Porém, Epworth, Mark Foster e todas as pessoas que se envolveram com a produção de “Supermodel” deveriam saber que o Foster the People não alcança seus maiores méritos tentando imitar o Radiohead.

Mais um encontro com sons noventistas marca “Goasts in Tress”, um número pop que, de tão sem-graça e sonolento, poderia muito bem fazer parte de algum álbum do Travis. “The Truth” embarca em uma estrutura eletrônica tortuosa, e apesar de seu bom refrão, não diz nada quanto às qualidades do Foster the People; alguns até dirão que é a prova de que a banda sabe brincar com aspectos modernos da música eletrônica, mas a canção se trata, basicamente, de um ensaio do produtor Paul Epworth em que os integrantes do conjunto não são nada além do que meras marionetes. O fim do disco, realmente, não condiz com seu início arrasador: a faixa derradeira, “Fire Scape”, soa tão imatura que mais parece uma demo… Algo que seria até compreensível se o disco tivesse sido bordado com pressa, mas que não pode ser aceito quando se tem a notícia de que “Supermodel” foi construído ao longo dos três últimos anos.

Mas apesar de pouco assertivas, as últimas faixas não chegam a destruir o registro. Ainda que passe longe da ideia de “um perfeito disco de música pop”, o disco cumpre o seu papel de acrescentar novos hits à carreira da banda. Isso é muito pouco? Sim, se levarmos em consideração que o Foster the People é capaz de êxitos muito maiores… Não, se pensarmos que é essa é a grande intenção de qualquer projeto de música pop. É claro que as pretensões grandiosas não são cumpridas, mas negar ao disco o grande poder de suas primeiras faixas seria como assinar um atestado de surdez.

Se as faixas iniciais são convincentes, e as finais não atraem, não seria mais plausível, portanto, o lançamento de um EP? Talvez, mas é a urgência que claramente move o conjunto. Pressionado pelo público, pela crítica e pela gravadora a acertar em todas suas apostas, o Foster the People mostra, definitivamente, que grupo ele é: um trio ainda incomodado com os holofotes, ainda não completamente amadurecido e que não consegue caminhar por um disco de grande duração sem cometer alguns equívocos. Mas, ao mesmo tempo, é uma banda que merece nossa atenção e nossa torcida, pois se há algo que não lhe falta é capacidade: afinal, acaba ficando claro que, algum dia, eles farão um trabalho de dimensões grandiosas. “Supermodel” passa longe de ser um disco perfeito, mas mas ao comprimirmos apenas seus êxitos, veremos que se trata apenas de um ensaio para algo que ainda está por vir.

NOTA: 6,0

Track List:

01. Are You What You Want to Be? [04:30]

02. Ask Yourself [04:23]

03. Coming of Age [04:40]

04. Nevermind [05:17]

05. Pseudologia Fantastica [05:31]

06. The Angelic Welcome of Mr. Jones [00:33]

07. Best Friend [04:28]

08. A Beginner’s Guide to Destroying the Moon [04:39]

09. Goats in Trees [05:09]

10. The Truth [04:29]

11. Fire Escape [04:22]

2014: Singles – Future Islands

Singles

Por: Renan Pereira

É com certa dose de estranheza que o grupo Future Islands, após uma década em atividade, é somente agora descoberto pelo público de massa: pois “Singles”, o quarto álbum do trio da cidade de Baltimore, Maryland, pode ser encarado de inúmeras formas, menos como um “disco de estreia”. Maduro em essência, o trabalho converte a própria essência do Future Islands em uma base musical concisa, visando amplificar as melhores qualidades do conjunto em prol da construção de seu mais convincente catálogo de canções até aqui; intitulado com acerto, “Singles” consegue ser, além de um dolorido tratado sobre corações solitários, uma união de faixas facilmente assimiladas pelos ouvintes.

Tal qualidade deve-se basicamente a um ajuste fino na forma com a qual os arranjos são construídos. Se nos trabalhos anteriores a massa sonora surgia da força imposta pelos teclados de Gerrit Welmers, os alicerces de “Singles” surgem da forma com que a guitarra e o baixo de William Cashion encontram as dramáticas performances vocais de Samuel T. Herring. Absolutamente teatral, sendo, por agora, o grande “atrativo comercial” do Future Islands, Herring utiliza suas emoções escancaradas para conquistar o público e a crítica, bebendo de influências de gigantes da música, como David Bowie e Morrisey. 

No fim, todas as nuances apresentadas pelo álbum provém da união das performances melodramáticas de Herring com a base levemente dançante que vem adornado a carreira do grupo desde “Wave Like Home”, seu trabalho de estreia, lançado em 2008. Na realidade, é muito provável que a louvação que o disco tem recebido não existisse sem os vocais altamente emotivos: os versos são simplórios, muitas vezes até mesmo “bregas”, e só mesmo uma carga dramática tão atraente faz com que pensemos que há muito mais significado além dos clichês. Herring canta “baby don’t hurt me no more” e outras obviedades do tipo de uma forma tão autêntica, tão sincera, que tudo passa a ser inédito a nossos ouvidos.

O início do álbum, com a poderosa “Seasons (Waiting On You)”, já dá provas para o ouvinte que, apesar de seu conceito sisudo, “Singles” contém números dançantes em potencial: do baixo pulsante aos teclados que incluem bonitos detalhes à estrutura sonora, tudo parece trabalhar para criar a base perfeita para que Herring faça suas agonias dançarem em uma explosão pop. William Cashion e suas competentes linhas de baixo e os efeitos eletrônicos coloridos de Gerrit Welmers voltam a se destacar na dinâmica “Spirit”, mas é Herring mais uma vez que encanta o ouvinte: profundas, suas performances inserem na música pop um significado que não vinha sendo visto há muito tempo. Esquivando-se das superficialidades e das bizarrices vem adornando o universo pop nos últimos anos, Herring se apresenta absurdamente apaixonado e sincero, abrindo sua alma sem pensar em grana ou fama, e sim visando somente atingir, de alguma forma, os ouvintes que algum dia se depararem com sua música.

Na terceira faixa, “Sun in the Morning”, uma doce melodia se destaca em um intenso flerte com o passado; porém, é interessante como o grupo utiliza as heranças oitentistas do synthpop como um ponto de partida, e não como um norte a ser seguido… Afinal, se é do passado que é feito o futuro, o Future Islands sabe aproveitar de forma primorosa esse conceito. A seguinte, “Doves”, mostra que, sabendo onde pisar, o trio não precisa necessariamente se aventurar para fazer boas canções. Ainda que em alguns momentos haja um maior compromisso com o introspectivo, como em “Back in the Tall Grass” e suas interações com as origens europeias da dance music, tudo parece ser cuidadosamente bordado com a finalidade de atingir não apenas nossos ouvidos, mas também nossas emoções: afinal, com tantas aflições, Herring precisa de vários ombros amigos para poder chorar.

Nostálgica, “A Song for Our Grandfathers” carrega o ouvinte a uma proposta ainda mais melancólica, e aposta alto na climatização para que seus objetivos sejam alcançados. É a mesma melancolia, porém, que afasta a seguinte, “Light House”, de todos os méritos: é como se a banda sentisse certo conforto com o fundo do poço, e todas essas emoções que durante o restante do disco são encaradas com combatividade, servissem apenas para contemplar um momento máximo de desânimo. Algo não combina nem um pouquinho com a verve pulsante do Future Islands, que felizmente se redime na boa “Like the Moon”, em que Sam Herring volta a se apresentar como um grande destaque ao fluir seus sentimentos de forma assertiva.

“Fall From Grace” bebe do David Bowie do início dos anos oitenta, encontrando na base estilística do disco “Scary Monsters (and Super Creeps)” o sustento para uma das melhores canções do disco – um número que até se propõe a se aventurar com alguns riffs de guitarra surpreendentemente ruidosos. A faixa final, “A Dream of You and Me”, certifica a união do álbum com o público ao traçar um rumo de fácil audição, soando como um pop-rock retrô que parece salientar o ritmo agradável e as bonitas melodias que “Singles” nos reserva.

De certa forma, mesmo que involuntariamente, o Future Islands acaba plantando nos ouvintes um curioso sentimento: mesmo que você não veja com muitos bons olhos a proposta sonora da banda, passará a torcer pelo sucesso dela. Com isso, “Singles” é um daqueles discos que, mesmo não se fazendo presente na lista dos melhores, é capaz de cativar o ouvinte através da grande sinceridade com a qual o grupo encara a sua música: acreditando no que faz, sendo fiel a seus próprios valores, sem pensar em esconder os sentimentos que o guia. Um trabalho genuíno, competente, e se não elevará o Future Islands ao mainstream, parece ser, pelo menos, o ensaio de popularização que todas as bandas sinceras merecem.

NOTA: 7,2

Track List:

01. Seasons (Waiting for You) [03:46]

02. Spirit [04:22]

03. Sun in the Morning [03:48]

04. Doves [03:28]

05. Back in the Tall Grass [04:15]

06. A Song For Our Grandfathers [04:55]

07. Light House [04:47]

08. Like the Moon [04:40]

09. Fall From Grace [04:15]

10. A Dream of You and Me [03:49]

2014: Vista Pro Mar – Silva

Vista Pro Mar

Por: Renan Pereira

Embora venha sendo encarado, pela maioria da crítica especializada, como um “álbum de crescimento”, “Vista Pro Mar”, o segundo disco do capixaba Silva, deve ser encarado através de outra ótica. Até porque são muitas as diferenças entre o presente registro e  o álbum de estreia do músico, “Claridão”. Que Silva cresceu, evoluiu, isso é mais do que óbvio – e é, na verdade, um processo totalmente natural para um jovem que, logo em seu primeiro disco, foi rotulado como um dos grandes nomes da nova safra de artistas brasileiros. Seu público aumentou muito, e de um desconhecido promissor, ele acabou se tornando o grande queridinho dos hipsters: se faltava algo para atestar o crescimento de sua popularidade, a participação do músico na última edição do festival Lollapalooza serviu para mostrar que, hoje em dia, Lúcio Silva Souza é um nome respeitado dentro do cenário pop tupiniquim.

As mudanças, porém, não se concentram apenas na forma com que o público (e até mesmo a crítica) olha para Silva. Enquanto “Claridão” se comportava como uma grande novidade dentro da música brasileira, trazendo para nossas paisagens um estilo de música pop que há um bom tempo já estava sendo feita no exterior, “Vista Pro Mar” é um ponto de continuação. Tentando se desfazer do precipitado rótulo de “experimental” que recebera em seu primeiro trabalho, Silva agora parece querer brincar com as maiores tradições da música destinada às massas sem que o ouvinte possa ser pego de surpresa. Em suma, não há desafios. O que anos atrás era inédito e pulsante agora é convertido em cenários bucólicos, em paisagens sonoras que são bordadas voltando-se à contemplação.

O título do álbum já entrega sobre qual atmosfera Silva está investindo: um registro veranil, “Vista Pro Mar” é resultado de um sereno olhar para o oceano, trazendo à tona todos os sentimentos que a brisa litorânea é capaz de amplificar. Em meio às batidas das ondas e ao som das gaivotas, o músico divaga sobre o amor com a mesma sinceridade que, em 2012, ele parecia musicar aquele ano em que muita gente jurava que o mundo acabaria.

Portanto, se você deseja embarcar em “Vista Pro Mar”, se prepare para encarar em um trabalho confortante, de fácil audição, e que certamente te fará relaxar. Entre batidas modernas e uma melodia cantarolável surge a primeira faixa, iniciando os trabalhos de maneira competente: bastam os primeiros segundos para sentir o clima que embalará todo o registro. Silva é um ótimo cantor e, principalmente, um exímio produtor, manejando os sintetizadores de maneira inteligente, sabendo prender a atenção do ouvinte. Há quem reclame de suas letras simples – e em “Vista Pro Mar” elas estão, de fato, ainda mais simples. Mas quem disse que o simples não pode ser sofisticado? A poesia de Silva pode até não ser tão rebuscada, mas funciona perfeitamente como uma “acompanhante” para seus atraentes rumos sonoros.

Conhecendo a atmosfera do trabalho, o ouvinte se encontra pronto para percorrer um registro marcado por uma sonoridade tranquila, de fácil audição até para quem está musicalmente desatualizado. Não é surpreendente que haja, dessa forma, um constante sentimento de nostalgia: Silva faz uso de referências não tão novas para construir um som que é, inegavelmente novo. “Atual” é um adjetivo correto, mesmo quando canções como “É Preciso Dizer” se embebedam de referências oitentistas. Um single de potencial, a segunda faixa trabalha como uma boa canalizadora de emoções para a dança leve de “Janeiro” e seu positivismo harmônico.

Em um trabalho tão bonito, construído para ser uma adorável audição em um clima litorâneo, não poderia faltar aquele sentimento único de observar o mar durante o pôr-do-sol do último dia de férias: mais do que um tratado sobre a saudade de um momento que ainda não acabou, “Entardecer” dá ênfase à bela contemplação que foi presenciada. Com a companhia da doce voz de Fernanda Takai, Silva faz da quinta faixa, “Okinawa”, a canção mais linear do disco: uma simples música de amor, com palavras simplórias, mas que funciona com primor – principalmente devido ao casamento perfeito entre as vozes dos cantores.

É importante dizer que um dos maiores êxitos do disco está na forma com que Silva utiliza seu recolhimento como um bem público, fazendo de seus mais íntimos momentos matérias-primas de um catálogo de canções oferecidas aos ouvintes; mesmo se isolando em uma praia, o músico sabe como nos atingir. Vide a canção “Disco Novo”, com uma analogia que mostra como geralmente a pressão por um novo lançamento atinge os iniciantes que se dão bem em seu álbum de estreia… Se Silva estava sendo “pressionado” para lançar algo ao nível de “Claridão”, ele encontra na naturalidade o ponto a ser explorado: “Vamos, vem ouvir”, ele convida, encarando um novo disco como uma abertura para novos sentimentos. Todo esse teor de novidade, porém, acaba encontrando maior significado em “Universo”, quiçá a melhor faixa do álbum: um número altamente dinâmico, rico em detalhes, que nos dá a certeza sobre a evolução de Silva como produtor.

Outro turbilhão sonoro abraça o ouvinte em “Volta”, com mais uma certificação da habilidade do músico nos sintetizadores, perfazendo mais uma canção levemente dançante… Conceito que é abandonado brevemente quando surge a nona faixa, “Ainda”, composta por arranjos acústicos, e ambientada na máxima introspecção do disco – que, de certa forma, se comporta como um ponto fora da curva. Mas o respiro dura pouco, e em “Capuba”, a “eletrônica praieira” de “Vista Pro Mar” retorna com tudo, em mais uma ótima concepção de arranjos.

Interessante perceber que, embora seja mantido sempre na mesma temática, nas mesmas ambientações, “Vista Pro Mar” chega ao seu desfecho, com a canção “Maré”, sem enjoar o ouvinte. Na verdade, não seria de nada ruim se houvesse ainda mais duas faixas a explorar o conceito central: prova de que as fichas apostadas por Silva deram um bom resultado. Mesmo construindo um disco que não instiga, não surpreende, o músico parece ter acertado em todas as suas escolhas, querendo deixar claro que nem só de inventos pode viver um grande trabalho.

Até por isso, o presente registro não se comporta como um clássico – algo que “Claridão” só é devido ao contexto da época em que fora lançado. Mas Silva não quis fazer de “Vista Pro Mar” um grande clássico da música. Segundo o próprio, este disco foi criado em um momento diferente, sob circunstâncias distintas e, obviamente, com outras intenções. Portanto, para entender o álbum, é necessário vê-lo como um inofensivo produto da nova música pop brasileira, um álbum tranquilo que oferece ao público, a todo instante, melodias cativantes e palavras bonitas, diminuindo as pretensões a fim de alcançar uma fácil afinidade com o ouvinte. Se você esperava que Silva fosse te surpreender, acabará abismado justamente por ele não ter surpreendido.

Sim, o caminho tomado pelo músico é reto, límpido, fácil de seguir. Aí vem a pergunta: um grande artista precisa se arriscar? Nem sempre. O público de massa prefere músicas que possam ser facilmente digeridas, e quem pensa que a complexidade é um ponto-chave para construir um grande trabalho deve começar a aprender o que é a música pop. Para nossa sorte, disso Silva parece saber muito bem.

NOTA: 8,3

2014: Encarnado – Juçara Marçal

Encarnado

Por: Renan Pereira

Apesar de “Encarnado” significar o início de uma carreira solo, Juçara Marçal passa longe de ser uma estreante. Experiente, há mais de vinte anos trabalhando em prol da música alternativa paulistana, emprestando sua voz para projetos como Vésper, A Barca e o aclamado Metá Metá, a cantora acumula toda essa vivência para construir, no primeiro disco que carrega o seu nome no título, um trabalho mais do que simplesmente convincente. Uma obra-prima, “Encarnado” surge como um capítulo fundamental dos novos rumos da música brasileira.

Se o fato de compreender o primeiro exemplar da discografia solo de uma grande intérprete já não bastasse, “Encarnado” se comporta como a maior obra já produzida por um incansável núcleo criativo que renova, já há algum tempo, a MPB produzida na cidade de São Paulo. Composto por nomes como Kiko Dinucci, Romulo Fróes e Thiago França, por exemplo, esse aglomerado de artistas com ideais partilhados tem se especializado em construir verdadeiros colossos em estúdio nos últimos anos… Os discos “Metal Metal”, do Metá Metá, e “Passo Elétrico”, do Passo Torto, são apenas dois exemplos da extrema competência que envolve essa turma.

Sendo uma integrante desse núcleo, Juçara Marçal utiliza com propriedade um conglomerado de referências da Vanguarda Paulista para costurar seu álbum de estreia. Seja com referências diretas a velhos nomes, como Itamar Assumpção e Tom Zé, ou com a utilização da sonoridade ruidosa que envolve o grupo Passo Torto, Juçara faz de “Encarnado” muito mais uma continuação dos inventos de um movimento do que um simples “início”.

Até porque, se existe um mote que guia o pensamento da cantora neste álbum, esse é “começar pelo fim”. Sim, a morte é o tema central do disco. Mas embora carregue o título de “Encarnado” e tenha uma temática bem definida, o álbum significa, na realidade, muito mais do que música… Ainda que o conceito central seja a morte, seria um erro crasso não degustá-lo como uma grande ode à vida.

Vida que morre para renascer, reencarnar. “Não diga que estamos morrendo, hoje não”, entrega a cantora logo nos primeiros versos do disco, mostrando que apesar da chegada dos últimos suspiros, o que prende a artista à temática é a vontade de sobreviver. Uma vida maleável, frágil, incerta, que é representada com louvor pela colossal instrumentação construída por Kiko Dinucci, Rodrigo Campos e Thomas Rohrer. Aliás, tratar “Encarnado” como um trabalho só de Juçara seria um descompasso.

Mas Juçara Marçal é, obviamente, a grande estrela da obra, fato que é inserido na mente do ouvinte logo nos primeiros instantes de “Velho Amarelo”, a primeira faixa. Trabalhando para alocar a cantora em um palco do qual o espectador não desviará os olhos, a canção, composta por Rodrigo Campos, se comporta como uma apresentação perfeita do conceito da trabalho, delineando os rumos instrumentais e líricos que o embalarão em sua totalidade.

Ancorado em uma atmosfera caótica, mas que nunca se descontrola, o álbum vai entregando ao público formidáveis interpretações de Juçara ao mesmo tempo em que o tema central é encarado de diferentes maneiras por cada faixa. Na agressiva “Damião” o olhar é voltado para a vingança, enquanto em “Queimando em Língua” é uma representação romântica que embala a morte. Tudo encarado sob uma ótica arriscada e inesperada, que, segundo palavras de Romulo Fróes no release do disco, era inimaginável até mesmo para as pessoas que sempre acompanharam de perto a carreira da cantora. Juçara surpreende a todo instante, quebrando com o habitual conforto que normalmente embala a MPB.

Em “Pena Mais Que Perfeita” há a aceitação do destino, derramando lástimas enquanto o momento derradeiro é aguardado com melancolia. Única canção do álbum composta por Juçara, “Odoya” transforma a voz da cantora em um instrumento que vaga em oração, pedindo proteção para encarar o momento mais chocante do disco: uma dança com os aspectos mais violentos da morte. “Ciranda do Aborto” é a faixa central do disco, construindo com contornos épicos um número de força absurda, que assusta, espanta, e faz a artista se desmanchar em uma interpretação magistral. Monumental, a canção se candidata não apenas à melhor música desse ano, mas de muito tempo.

Um dos poucos momentos em que Juçara se agarra ao conceito pronto do Metá Metá mora na “Canção Pra Ninar Oxum”, de Douglas Germano, com suas alusões claras às heranças africanas. Em “E o Quico”, de Itamar Assumpção, a cantora se rende a suas referências da Vanguarda Paulista, brincando com a loucura no cenário de uma abdução. Outro grande artista lembrado por Juçara, Tom Zé empresta para “Encarnado” a canção “Não Tenha Ódio no Verão”, originalmente lançada no disco “Tropicália Lixo Lógico”, de 2012.

“A Velha Capa Preta”, composição de Siba, personifica a morte, tratando-a como um monstro, uma vilã, ao dizer que ela “anda no mundo vestindo mortalha escura
, e procurando a criatura que espera condenação. Quando ela encontra um cristão sem vontade de morrer, e ele implora pra viver, mas ela ordena que não”. A passagem do tempo também é fatal, e “Presente de Casamento”, apesar de se ambientar em um incêndio, é um retrato da espera da morte inevitável enquanto se está na velhice.

Na última faixa, “João Carranca”, Juçara Marçal entorpece-se de malemolência para mostrar mais uma de suas facetas: a de contadora de histórias. Na canção, é contada a saga de um garoto bonito que, após ter o rosto desconfigurado, passou a ser zombado: “E o que era belo, agora espanta, e o seu nome hoje é João Carranca”. Versos de Dinucci para um grande samba, deixando claro, no desfecho do disco, de onde vem as inspirações dos músicos que o bordaram.

A certeza que fica, no fim, é que cantando sobre a morte Juçara nunca esteve tão viva. De forma excepcional, ela passa por cima de todo o seu passado para renascer em uma nova artista, com uma nova carreira… Morrer, afinal, às vezes pode ser bom. E ao morrer em doze canções, para depois reencarnar, Juçara Marçal oferece um veneno letal àqueles que tem decretado a morte da música brasileira… esses sim não tem o direito de viver novamente.

NOTA: 9,2

Track List:

01. Velho Amarelo [04:25]

02. Damião [02:06]

03. Queimando a Língua [05:04]

04. Pena Mais Que Perfeita [04:16]

05. Odoya [02:49]

06. Ciranda do Aborto [05:40]

07. Canção Pra Ninar Oxum [03:25]

08. E o Quico [02:42]

09. Não Tenha Ódio no Verão [02:52]

10. A Velha da Capa Preta [03:47]

11. Presente de Casamento [01:18]

12. João Carranca [02:00]

2014: Despertador – Leo Cavalcanti

Despertador

“Despertador” parece ser um daqueles discos cuja capa logo vai entregando o conceito pelo qual o trabalho é guiado. Lá está Leo Cavalcanti imerso em um cenário intergalático, fazendo-se parte integrante dessa imensidão que é o universo. Entre cores e símbolos, o músico ostenta sua barba profética, fazendo com que todo esse exoterismo faça com que o ouvinte lembre, mesmo que vagamente, dos conceitos plantados pela música pop lá nos anos sessenta e setenta…

Porém, pouco ou quase nada do presente registro soa como uma mera “revitalização” de uma base musical antiga. Mais do que o segundo exemplar da discografia de Cavalcanti, “Despertador” é a concretização de um talento que já havia sido demonstrado no álbum “Religar”, de 2010. Há agora uma maior linearidade, a exploração de um som que o músico tornou sua própria identidade, e embora a complexidade e os heterogeneidade tenham sido diminuídos em nome de uma maior aproximação com o público de massa, Cavalcanti faz do novo trabalho praticamente uma assinatura musical.

Mas para alcançar esse madurecimento como artista, não bastou ao músico a utilização dos conceitos que haviam costurado com acerto o seu primeiro disco. Ciente de que algo a mais seria necessário para quebrar a barreira da “promessa” para se tornar, enfim, uma “realidade”, Cavalcanti topou fazer de seu novo trabalho uma grande exploração de sons sintéticos. Esbarrando nos rumos eletrônicos de Silva, ou até mesmo no pop tortuoso proposto por St. Vincent, o compositor paulistano faz de uma sonoridade repleta de frescor a nova morada de seus versos cativantes.

“Despertador” abre com sua faixa-título, em que ótimas harmonias vocais constroem a ponte perfeita para ligar o conceito sonoro à lírica sutil – que engloba, aliás, todo o trabalho. Seja pela base energética, composta por batidas dançantes, ou pelo seu andamento pop, que parece se comunicar com algum hit perdido do pop-rock oitentista, a primeira faixa já parece deixar claro o acerto proeminente no qual o disco será guiado. Ainda que algumas faixas, como a segunda, “Só Digo Sim”, demonstrem uma aproximação até mesmo exagerada a uma estética simplória, são os versos sempre bem pensados de Cavalcanti que acabam ficando na mente do ouvinte… Como bem demonstra a inteligente e psicodélica “Sonho Parasita”.

A quarta, “Leve”, brinca com texturas da MPB para construir um número que mescla a todo instante o velho e o novo, como se uma canção setentista de Caetano Veloso passasse por uma remixagem. Interação que ainda fica mais clara na faixa seguinte, “Inversão do Mal”, mostrando que mesmo atento aos aspectos modernos da música, Cavalcanti nunca deixou de ser um grande admirador do tropicalismo; é aqui, afinal, que o exoterismo do disco acaba encontrando seu ponto máximo.

Se a quinta faixa fala que “a alquimia é real quando se aprende a escutar à si”, o instante de maior intimismo do álbum acaba ficando para “O Momento”, uma canção mais calma, que se encontra naturalmente envolvida em uma estrutura sentimental. Um teor melancólico que é bruscamente interrompido pelas texturas tortuosas de “Get a Heart”, única composição do álbum com letra em inglês, e que parece soar como uma colaboração de Leo Cavalcanti com Annie Clark… Mais um ponto positivo para a competente produção de Fabio Pinczowski, sempre procurando fugir do óbvio mesmo quando o assunto é música pop.

“Tudo Tem Seu Lugar” é uma  belíssima marcha de dimensões épicas, envolta por cítaras em uma ambientação etérea, retratando as idas e vindas da nossa existência: é o momento em que o músico expõe seus mais íntimos pensamentos para mostrar a naturalidade com a qual os altos e baixos da vida devem ser tratados. Ainda que “Sua Decisão (Ser Feliz e Contente)” não consiga alcançar a mesma qualidade das melhores faixas do disco, e que soe como uma espécie de auto-ajuda, seria ignorância em demasia não citar “Despertador” como um trabalho guiado pela positividade… Ainda que hajam obstáculos, dores, pedras, a mensagem passada por Leo Cavalcanti é sempre otimista.

“Amoral” encerra o disco condensando todo o conceito lírico e sonoro utilizado por Cavalcanti nas nove faixas que a antecedem… Uma contemplação final do “pop intergalático” proposto pelo artista, que assume: “É bonito constatar que este ser-disco já não me pertence, pois tem vida própria”. Leo Cavalcanti se oferece ao cosmos, mergulha no universo para fazer de seu novo trabalho um novo filho, oferecido ao público de todas as galáxias e dimensões. Ainda que seja resultado de um pop simples, confesso e de fácil degustação, é um registro que se propõe a viajar além do lugar-comum. E põe além nisso.

NOTA: 8,0

2014: G I R L – Pharrell Williams

Por: Renan Pereira

É muito normal que, de tempos em tempos, surjam novas estrelas da música. Às vezes elas surgem do nada, sem avisar, nos pegando de calças curtas… Noutras, em que o crescimento é progressivo, podemos acompanhar com nitidez o processo mais comum que envolve o nascimento de um novo sucesso da música popular. A presente fama de Pharrell Williams pode até estar associada a este segundo caso, mas tudo que envolve a popularização de seu nome deve ser considerada sob a ótica de que ele não precisou lançar nenhum disco para se tornar um músico famoso. É até engraçado observar que “In My Mind”, que até alguns dias atrás era o único exemplar da discografia solo de Pharrell, é, na realidade, o capítulo mais obscuro da carreira do produtor.

De certa forma, o desabrochar de Pharrell Williams mostra com clareza que, atualmente, o coletivo está se sobrepondo ao individual. Se os grandes êxitos nunca foram alcançados por quem decidiu andar na solidão, agora esta tônica parece se apresentar ainda mais relevante. Em suma, não é presunçoso afirmar que o produtor californiano seria apenas mais um músico perdido na multidão sem suas colaborações com outros artistas da música pop… A fama de Pharrell não veio de suas próprias canções, mas de suas aclamadas participações em trabalhos coletivos.

Mas também não podemos levar essa questão ao extremo, e dizer que Pharrell só é o músico respeitado que hoje é hoje em dia em função de sua contundente participação no premiado último disco do Daft Punk, “Random Access Memories” – ou, sendo ainda mais extremista, porque ele emprestou sua voz ao grande hit “Get Lucky”. Embora restrito muitas vezes aos bastidores, o crescimento do produtor ao longo dos últimos anos foi se tornando perceptível… Da parceria com Chad Hugo no The Neptunes, na banda N.E.R.D., chegando à produção de álbuns de Justin Timberlake, Jay-Z, John Legend, Frank Ocean e Daft Punk, tudo agora parece apontar, enfim, para “G I R L”, o primeiro trabalho solo de Pharrell a ser tratado com evidência.

É verdade que não dá para negar que o álbum está recheado de participações, mas pela primeira vez em muitos anos, Pharrell tem a oportunidade de trabalhar ditando todas as regras. Um exercício individual que se torna nítido logo no início do disco, com o surgimento luxuoso de “Marilyn Monroe”, a primeira faixa; embebida em uma produção caprichadíssima, a canção conquista os ouvintes sem grandes dificuldades através de seu ritmo cativante, que permeia todo um teor harmônico e sensual.

Porém, ao se embrenhar na continuação do disco, o ouvinte é desapontado por canções que não conseguem cumprir a promessa de um grande trabalho. Mostrando que o disco não estava sendo planejado, e que seu lançamento se deve muito à pressão que o músico vinha enfrentando para que sua recente fama fosse melhor aproveitada, “G I R L” se esparrama em faixas que, unidas, não conseguem significar muita coisa. Há o que parece ser sobras de estúdio de outros trabalhos, canções não amadurecidas e números incluídos somente para encher um set list, não existindo nenhum ponto de convergência.

Se a segunda faixa, “Brand New”, soa como uma faixa não aproveitada do último trabalho de Justin Timberlake, a quinta, “Gust of Wind”, parece ser uma sobra de “Random Access Memories”. A parceria de Pharrell com Miley Cyrus em “Come It Get Bea” resulta em uma música tão ruim que não seria nada surpreendente vê-la na extensão de “Bangerz”, e apenas quando se encontra com Alicia Keys é que o produtor consegue fazer de uma faixa colaborativa de seu novo disco um número a ser destacado: “Know Who You Are” consegue unir as obsessões dos dois músicos em relação ao R&B com grande acerto, estacionando em uma concepção habitual, bastante tradicional, porém sublime.

Das canções “solitárias” do disco, poucas também merecem um destaque positivo. Faixas como a funk “Hunter” e a estranha “Lost Queen” se perdem em estruturas pouco dinâmicas, mostrando até mesmo a pressa com a qual o disco foi bordado… É como se os executivos da Sony tivessem pedido a Pharrell para reunir canções para compor um disco de um dia para o outro, e o produtor simplesmente recolhesse sem muito cuidado alguns rascunhos de sua gaveta.

Mas se o recheio não é lá muito atraente, pelo menos os extremos do disco devem ser saboreados: tão assertiva quanto a primeira faixa, a última, “It Girl”, mergulha em R&B delicioso, que até consegue lembrar-nos dos momentos mais suaves da carreira de Stevie Wonder. Mas espera aí, e “Happy”? É uma canção deliciosa, um hit poderoso e perdeu injustamente o prêmio de “melhor canção original” na última edição do Oscar… mas sua presença no disco não é muito relevante; trata-se de uma decisão comercialmente óbvia, é verdade, mas a canção somente consegue encontrar seu real significado como trilha do filme “Meu Malvado Favorito 2”.

Porém, convenhamos que uma boa música, mesmo que não consiga se encaixar muito bem, é melhor do que a presença de uma canção de má qualidade, não é verdade? Pois o mesmo acontece com a quarta faixa, “Gush”, outro R&B bem-resolvido que mostra em qual terreno Pharrell Williams se sente mais à vontade: um ponto que o músico deveria considerar para o seu próximo trabalho. É melhor atirar em um alvo com precisão do que errar tiros dados para todos os lados.

Até porque, no fim, o que marca em “G I R L” é a sua inconsistência: um disco que não consegue manejar com competência até as suas melhores faixas. Porém, temos que admitir que se trata de um trabalho com boas ideias, com alguns singles de potencial e contando com a batuta de um artista que consegue mostrar sua qualidade… adjetivos comuns para um trabalho que, melhor amadurecido, poderia render ótimos frutos. De fato, a pressa acabou consumindo os rumos sonoros de “G I R L”, deixando até mesmo dúvidas sobre a forma com que Pharrell Williams conduz a sua carreira. Hoje ele é inegavelmente uma estrela, mas somente com trabalhos contundentes o prazo de validade de seu brilho pode ser estendido. E apesar de ser um dos produtores mais requisitados da atualidade, ele ainda não sabe, pelo jeito, o que fazer de sua carreira solo.

NOTA: 6,0

Track List:

01. Marilyn Monroe [05:51]

02. Brand New [04:31]

03. Hunter [04:00]

04. Gush [03:54]

05. Happy [03:53]

06. Come Get It Bea [03:21]

07. Gust of Wind [04:45]

08. Lost Queen [07:56]

09. Know Who You Are [03:56]

10. It Girl [04:47]

2014: St. Vincent – St. Vincent

St. Vincent

Por: Renan Pereira

Annie Clark é uma daquelas figuras ímpares da música, aqueles seres complexos que às vezes até duvidamos que façam parte do mesmo mundo que a gente. Andrógena e estranha são alguns dos adjetivos com os quais os mais apressados tentam rotulá-la, em uma fracassada tentativa de defini-la.  Talvez nem ela mesma saiba, ao fundo, quem realmente ela é… Certo dia, enquanto revelava a origem de sua alcunha artística, St. Vincent, que remete ao nome do hospital em que o poeta Dylan Thomas falecera, ela disse que “aquele foi o lugar em que a poesia veio a morrer. Essa sou eu”. Indecifrável.

É bem provável que essa ânsia de rotular à primeira vista venha do nosso comportamento quanto a coisas que, de alguma forma, fogem do que consideramos habitual. Embora seja assumidamente pop, St. Vincent não detém os mesmos predicados que formam normalmente o conceito de “diva”. De aparência frágil, voz suave e com uma proeminente via experimental, Annie Clark vai muito além das obviedades que permeiam a música popular. Algo que estranha e faz com que nos surpreendamos positivamente, pois até mesmo o mais pacato dos seres humanos sempre sente uma pontinha de atração pelo exótico. E, sem dúvida, St. Vincent intriga.

Fazendo de seu novo disco uma grande contemplação do universo particular que ela construiu ao longo desses oito anos, Clark borda o seu mais acessível e completo trabalho. Os experimentos e a base “estranha” se mantém, mas tudo que forma a complexa estrutura artística de St. Vincent é moldado a fim de atingir o grande público. A música pop não precisa ser óbvia, e a cantora trata de corrigir uma das mais errôneas ideias quanto ao que se considera “vendável”.

Bastam os primeiros segundos de “Rattlesnake” para que o ouvinte perceba a complexidade que entorna o disco. Envolta em uma sonoridade inventiva e dinâmica, que lembra os momentos mais experimentais de David Bowie e do Talking Heads, Clark dispara um fantástico conjunto de versos, contendo experiências intrigantes que construíram a artista única que ela é… A primeira faixa, por exemplo, é um verdadeiro relato sobre as percepções da musicista enquanto ela andava pelo deserto. “Uma comunhão com a natureza”, ela diz.

Perguntada sobre como o disco soaria, ela não titubeou ao afirmar que seria como “um registro festivo que você poderia tocar em um funeral”. De fato, apesar de mostrar toda a humanidade que pode existir dentro do androginismo, “St. Vincent”, o disco, não renega aos ouvintes uma constante e acertada aproximação com percepções entusiasmantes. Em “Birth in Reverse”, lá está St. Vincent empunhando sua guitarra para construir um número característico seu, tortuoso e complexo – e, ao mesmo tempo, festivo. Ainda está disposto a rotulá-la? Pois saiba que a tarefa fica cada vez mais difícil.

“Prince Johnny”, a terceira faixa, é uma canção extremamente sensorial, na qual St. Vincent brinca com nossas emoções vagando entre a suavidade e o caos. Essa guerra de sentimentos é, em grande parte, possibilitada pela forma inventiva com a qual a artista utiliza a sua guitarra… Não espere dela riffs óbvios, mas sim um conjunto de linhas tortas voltadas a intrigar o ouvinte. A própria forma classuda com que “Huey Newton” se desenvolve mostra com primor a intensa colagem de texturas e sentimentos que Annie Clark não se cansa de fazer. No poderoso single “Digital Witness”, tudo isso se funde em união a um jogo estético que sempre esteve presente na carreira da compositora.

A platônica “I Prefer Your Love” mostra St. Vincent flertando com algo mais próximo ao tradicional, porém com uma altíssima carga sentimental: a canção foi escrita para a mãe da artista, que na época estava doente. Segundo a própria musicista, enquanto “Strange Mercy”, seu álbum anterior, era tratado com um teor mais íntimo, o presente registro é mais expansivo quanto aos sentimentos. Algo que faz com que tudo se aproxime do ouvinte, apesar do dinamismo intensamente inventivo… Vai dizer que “Regret”, apesar de conter arranjos experimentais, não é uma canção acessível?

Haverá aqueles fãs das antigas, que dirão que o novo disco não contém uma sonoridade tão inédita quanto “Strange Mercy”. E isso é verdade. Porém, St. Vincent sempre tratou de fazer de seus registros em estúdio trabalhos únicos, distintos entre si… E apesar de ser menos experimental, “St. Vincent” é mais consistente, acumulando uma extensa bagagem para formar o melhor conjunto de canções já produzido pela musicista… e sem se esquecer, enfim, do público. “Bring Me Your Loves” parece ser, até mesmo, um alento destinado para os mais sedentos por grandes novidades. De certa forma, Annie Clark está disposta a agradar a gregos e a troianos.

A nona, “Psycopath”, esbarra com força na new wave dos anos oitenta, se comportando como um pop-rock com influências de David Byrne, enquanto a décima, “Every Tear Disappears”, utiliza todas as texturas tortuosas de St. Vincent para pregar em nossa mente um conjunto melódico memorável. Como se ainda bastasse algo para causar surpresa (ou até mesmo estranheza), um soft rock essencialmente setentista surge na última faixa, “Severed Crossed Fingers”, na qual St. Vincent explora a capacidade do ser humano em ter esperança mesmo quando ela, na verdade, inexiste. Mais uma sacada inteligente da musicista, que encerra o disco com uma inesperada tranquilidade.

É surpreendente a forma como Annie Clark insiste em nos surpreender a todo instante? Sim e não. No fim, mesmo sabendo que não dá para prever o que a artista irá aprontar, lá estamos nós sendo pegos de surpresa mais uma vez. Às vezes pensamos que St. Vincent ficaria bem em uma camisa-de-força, em outras temos certeza de que um trono seria mais adequado para ela. É justamente por nos confundir, por brincar com nossas percepções, que St. Vincent é uma das figuras mais necessárias da música atual.

NOTA: 8,9

Track List:

01. Rattlesnake [03:34]

02. Birth in Reverse [03:15]

03. Prince Johnny [04:36]

04. Huey Newton [04:37]

05. Digital Witness [03:21]

06. I Prefer Your Love [03:36]

07. Regret [03:21]

08. Bring Me Your Loves [03:15]

09. Psychopath [03:32]

10. Every Tear Disappears [03:15]

11. Severed Crossed Fingers [03:42]

Experimente: O rock poético de André Prando

Por: Renan Pereira

Um “rock esperto autobiográfico”. Assim é que o capixaba André Prando define a sua música. Aliás, é muito bem ver que, dentro do cenário alternativo, existem ainda novos nomes preocupados com todos os tipos de detalhes: dos riffs de guitarra, das destacadas linhas de baixo, das letras inteligentes e do vocal caprichado. Isso é, sem dúvida, esperteza. Ponto positivo para quem deseja atrair não apenas os ouvidos do público alternativo, mas também daquela galera que ficou órfã com a decadência das grandes bandas do rock clássico.

Os instrumentais de Prando são fortes, mas o grande destaque de suas canções está nos versos. Poéticos, os rumos líricos encontram referências não apenas no cotidiano, mas também na arte em geral. Para isso, Prando aceita a árdua tarefa de inserir na música popular toques de William Blake, Castaneda, Tolstoi e Dostoiévski.

“Estranho Sutil”, o primeiro disco de Prando, deverá ganhar vida ainda nesse ano. Por enquanto, podemos degustar um ótimo aperitivo no EP “Vão”, em que quatro convincentes faixas nos apresentam ao senso composicional do músico. A seguir, uma pequena entrevista de Prando para o RPblogging nos ajuda a conhecer um pouquinho mais desse promissor artista.

Quando e por que você começou a compor?

Acho que tudo começa quando você se liga de alguma forma com a arte pela primeira vez e contrai a tal doença. Eu desenho desde criança, lembro de ficar rabiscando os livros também, foliava sem saber ler. Sem saber o que estava fazendo eu até rabisquei uma pintura de William Blake, ouvia LP do Raul em casa, etc. Mas bem… desde moleque eu escrevia poesias (pensemos em 1998 aí, 8 anos). Quando tinha tarefa de escrever alguma coisa na escola eu sismava em escrever poesia, a professora ficava puta pra disfarçar o encanto. Aos 13 anos, quando comecei a aprender violão, minha intenção era aprender a tocar para poder compor.

Quais são as suas principais referências musicais?

Penso que pra sacar o lance da identidade na voz, quem me ajudou foram os dinossauros Axl Rose, Steven Tyler, Eddie Vedder. Sempre gostei muito do respectivo som de cada um deles. Nomes que me influenciaram em N formas foram nomes como Sérgio Sampaio, Raul Seixas, Mutantes, Humberto Gessinger, Zé Ramalho, Beatles, Doors… vou vagando por aí nos clássicos.

Seu primeiro trabalho de longa duração terá ligações com o presente EP?

A 4ª faixa do EP se refere, entre outras coisas, à composição “Inverso ano luz”, que deve ser a faixa 1 do CD. Já é alguma coisa, né? (risos). Bem, as músicas se misturam, no CD terão músicas que foram compostas antes de algumas que vieram no EP, temas que ainda se encontram, e tal… Mas a cara do som possivelmente será outra, espero. Assim como o EP tenta, em 4 faixas, explorar algumas coisas diferentes, no CD eu exploro diferentes ingredientes também. Obs.: Não terá música repetida.

Como você define a sua música?

Autobiográfica… um Rock Esperto.

2014: High Hopes – Bruce Springsteen

High Hopes

Por: Renan Pereira

Bruce Springsteen parece não ter envelhecido. Apesar dos 64 anos que ele carrega nas costas, o grande “Boss” da música norte-americana continua sendo um artista de uma jovialidade surpreendente; quem acompanhou seu estupendo show na última edição do Rock in Rio sabe muito bem do que está sendo dito. Não é raro seus espetáculos ultrapassarem três horas de duração, com um set list gigantesco, capaz de agradar a todos os gostos, e com uma performance que não decai em nenhum momento. Claramente, Springsteen tem em mãos a mística fórmula da juventude.

Mostrando mais uma vez que quer continuar produzindo em um ritmo invejável, o músico decidiu lançar seu segundo disco em três anos. Sucedendo o ótimo “Wrecking Ball”, de 2011, “High Hopes” chega para mostrar mais um capítulo de uma longa discografia, brilhante apesar de conter alguns exemplares de gosto duvidoso. Mas se nos anos noventa Springsteen não conseguiu manter o nível que outrora havia sido apresentado, hoje ele colhe os ouros de uma “velhice” bem aproveitada: de certa forma, ele conseguiu unir, de forma exemplar, a maturidade adquirida em tantos anos de estrada com a tão citada “jovialidade aos sessenta anos”.

Mas “High Hopes” não é, necessariamente, um produto atual. Embora seja tratado como um “novo disco”, o álbum não é nada mais do que uma reunião de canções antigas que, por algum motivo, acabaram ficando de fora dos últimos álbuns do compositor. Há, obviamente, um trabalho cuidadoso para que tudo possa soar atual, como se a construção do disco não passasse de um exercício natural de continuação… O que, infelizmente, não é. Apesar da presença do guitarrista Tom Morello (Rage Against the Machine), ilustre convidado utilizado por Springsteen como uma ponte para as novas gerações, “High Hopes” não deixa de ser o que, no fundo, o seu conceito não consegue esconder: uma coletânea de sobras de estúdio.

Espera aí… Então “High Hopes” é um disco ruim? O texto começou tecendo elogios aos rumos atuais da carreira de Bruce Springsteen, e agora lá vem o autor se contradizendo, afirmando que “High Hopes” é um disco fraco? Não, não, “High Hopes” não é um disco ruim. Nenhuma de suas doze canções são de má qualidade: todas demonstram a característica qualidade de Springsteen como compositor. Boas canções, inegavelmente, mas que não funcionam como um conjunto… Se comportando como um quebra-cabeças em que as peças não se unem, “High Hopes” traz rascunhos de diferentes facetas do músico sem apresentar nenhuma interligação. Um mero amontoado de canções soltas, que vai diretamente ao oposto do conceito de “álbum”.

Porém, também não podemos afirmar que o disco é um lançamento desnecessário. Canções de potencial não devem ser simplesmente esquecidas, fadadas aos bootlegs não-oficiais, e Springsteen faz de “High Hopes” uma morada definitiva para suas boas sobras de estúdio. Um lançamento plausível, bem-recebido, mas nem por isso grandioso… Até o mais fanático admirador de Springsteen não negará a falta de poder do registro, comparando-o às grandes obras do compositor. É provável que até mesmo o músico não o considere como um de seus grandes trabalhos, e por isso o disco deve ser encarado sob a ótica correta: não uma nova obra-prima, mas um registro que aproveita ideias antigas em prol de um exercício físico. Afinal de contas, Springsteen nitidamente o lançou para não perder sua invejável boa forma.

Energia essa que é facilmente percebida na faixa-título, em que os arranjos de metais e a presença de Morello inserem a potência necessária para Springsteen brilhar… Porém, por melhor que seja, a canção, que se comporta como o carro-chefe do presente registro, não é nada mais do que a regravação de uma regravação: Springsteen já havia a gravado no EP “Blood Brothers”, de 1996, como uma versão cover da banda The Havalinas, cuja gravação original data de 1990. Um teor empoeirado que é amplificado pela faixa seguinte, “Harry’s Place”, canção composta em 2001 e que, a princípio, faria parte do álbum “The Rising”.

A emocionante “American Skin (41 Shots)”, inspirada em um cruel assassinato de um cidadão americano por policiais, viu a luz do dia em 2001, quando foi tocada por Springsteen em alguns shows e acabou fazendo parte do disco “Live in New York City”. Já “Just Like Fire Would”, apesar de ser um cover, soa como uma das clássicas canções oitentistas de Springsteen, trazendo aquele rock encorpado de “Born in the U.S.A.”, enquanto a soturna “Down in the Hole”, com seus arranjos atmosféricos, mostra uma faceta mais obscura do músico, mais ligada à música folk.

Como um bom passeio pela carreira do “Boss”, “High Hopes” não deixaria de apresentar aspectos mais atuais da carreira do compositor: como as interações com o R&B e o coro de vozes de “Heaven’s Wall”, que se relacionam naturalmente com a base conceitual de “Wrecking Ball”. A melodia e o modo como os vocais são tratados em “Frankie Fell in Love” deixam claro que aqui se faz presente mais uma clássica composição de Springsteen, um prato cheio para os admiradores dos hits radiofônicos do músico, bem como para as sempre atrativas apresentações ao-vivo. “This Is Your Sword” é mais um folk-rock de primeira, em que os agradáveis rumos melódicos, inspirados na música gospel norte-americana, servem como um complemento adequado para os belos lirismos de Springsteen.

Mesmo em disco visivelmente menor, menos super-produzido, há espaço para que a música de Springsteen alcance o épico; caso da reflexiva “Hunter of Invisible Game”, que apesar de seu caráter introspectivo, é transferida automaticamente a dimensões grandiosas através de seus belíssimos arranjos de cordas. A também épica “The Ghost of Tom Joad”, faixa do álbum homônimo de 1995, encontra nos riffs raivosos de Tom Morello uma expansão natural, devido à versão gravada pelo Rage Against the Machine em 1997, que acabou fazendo parte do disco “Renegades”… Como resultado, um misto das versões anteriores de Springsteen e da antiga banda de Morello, assemelhando-se às baladas grandiosas do Guns N’ Roses no início dos anos noventa.

“The Wall” retorna ao folk e ao íntimo de Bruce Springsteen, tratando com um instrumentação semi-acústica a memória de norte-americanos mortos na Guerra do Vietnã, enquanto a última faixa, “Dream Baby Dream”, é uma surpreendente regravação da canção mais acessível dos pioneiros do synthpop do Suicide, incluída a pedido de Morello… Um bom desfecho, com cara de canção de ninar, como tantos outros discos já se findaram.

No fim, o que fica é aquele famoso “sabor de quero mais”. Apesar de não ser um trabalho ruim, longe de se caracterizar como perda de tempo (ou dinheiro), “High Hopes” clama por algo maior que, em um futuro próximo, provavelmente virá. O grande ponto positivo é que, com um novo disco, Springsteen provavelmente pegará a estrada novamente, oferecendo ao público novas oportunidades de acompanhar um dos melhores shows da música mundial… E assim, ele felizmente continuará na ativa.

NOTA: 6,2

Track List: (todas as faixas compostas por Bruce Springsteen, exceto onde indicado)

01. High Hopes (Tim Scott McConnell) [04:57]

02. Harry’s Place [04:04]

03. American Skin (41 Shots) [07:23]

04. Just Like Fire Would (Chris Bailey) [03:56]

05. Down in the Hole [04:59]

06. Heaven’s Wall [03:50]

07. Frankie Fell in Love [02:48]

08. This is Your Sword [02:52]

09. Hunter of Invisible Game [04:42]

10. The Ghost of Tom Joad [07:33]

11. The Wall [04:20]

12. Dream Baby Dream (Martin Rev/Alan Vega) [05:00]